quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Experiência - Parte A

Então, de repente consigo descobrir o momento em que as duas sequências se concertam e todo o som me envolve, o sapateado e a base eletrônica se encontram e se entrelaçam, marcham quase em uníssono, os golpes ressoam junto com os graves das caixas, parece haver um ritmo universal, e nesse impulso crio a imagem das ondas superpostas que no espaço visualmente vazio formam um fluído só audível que cinge os objetos do mundo.

Submergido nesse preenchimento, nesse fluído que ocupa tudo, identifico uma sequência entre os golpes do sapateado. É a métrica dos passos, os acentos dos sapateados replicam os passos que já pararam. Incorporando os tempos encontro alguns padrões rítmicos a que obedece o corpo em sua existência, como a respiração, as batidas do coração, o ritmo da fala, o balanço das mãos, os passos dados ao caminhar. Certos pontos dessa dança que só ouço me trazem à lembrança tudo isso, mas principalmente um andar compassado. A dança se desveste e percebo uma de suas faces: ela é passo e compasso, um caminhar enfático, um andar apaixonado, passo e compasso entregues à paixão do corpo pelo mundo palpável das vibrações. A ideia me alegra e perco a concentração, penso no lugar em que estou, no meu objetivo, lembro as janelas por que passei. A série infinita imaginada somada à impressão do ritmo universal de repente me fazem pensar no insinuante palácio de Marienbad.

Nesse estado de espírito abro os olhos. Mantenho o olhar fixo no teto, procurando ver a dançarina somente nos extremos do campo de visão. Desse ângulo, reconheço parcialmente o corpo. No início percebo somente a presença que executa movimentos estranhos aos convencionais. Torna-se difícil manter o olhar no teto quando ela está perto. É forte e irracional a intenção de buscar identificar o ser que se aproxima. O desconhecido guarda em si a potencialidade do mal. A possibilidade de sofrimento representada pelo corpo não identificado demanda a atenção intensiva dos sentidos. Ainda assim, a informação que guardo da identidade desse corpo (sei que é a Iandra) é mais relevante, para mim é real, e posso, com isto, controlar o impulso. O estado de alerta nasce por si só e descubro a condição de ameaça da dançarina, da dança. Nesse momento, a dançarina não é somente um corpo, é o corpo do som. A dança, como extensão ou materialização do som parece consistir na ruptura da concepção naturalizada do corpo como simples conexão da consciência com a realidade visual. A corporização do som pode partir de um gesto incomum e, nesse caso, foge ao convencional, ao conhecido. Assim, a dança também pode representar uma ameaça.

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